sábado, 21 de março de 2015

Hipoglicemia pós-prandial: problemas com o diagnóstico

A hipoglicemia pós-prandial frequentemente gera dúvidas e erros tanto no diagnóstico quanto no seguimento dos pacientes. Talvez seja a condição endocrinológica mais incorretamente diagnosticada. A seguir, os equívocos mais comuns e qual a abordagem considerada correta a luz do conhecimento médico atual.
Equívoco 1: A hipoglicemia pós-prandial é uma doença comum.
Hipoglicemia pós-prandial é o descritor do momento em que ocorre a hipoglicemia (até 4 horas após uma refeição) e não uma doença propriamente dita. A hipoglicemia pós-prandial é causada por doenças pouco frequentes como síndrome pós-cirurgia bariátrica, intolerância hereditária à frutose, insulinoma ou síndrome pancreatogênica hipoglicêmica não-insulinoma. Já ouviu falar em alguma delas? Diversos pacientes que procuram assistência médica por sintomas que acontecem após a alimentação como ansiedade, fraqueza, tremor, sudorese ou palpitações, na realidade têm diagnósticos bem mais comuns como síndrome pós-prandial, transtornos de ansiedade, síndrome do intestino irritável, intolerâncias alimentares, até mesmo enxaqueca. Ou seja, além de pouco frequente a hipoglicemia pós-prandial é muitas vezes diagnosticada de forma errada.
Equívoco 2: A hipoglicemia pós-prandial é diagnosticada através de curvas de glicose e insulina.
Eis um erro muito frequente! O paciente sintomático é avaliado através de uma curva com diversas medidas de glicose e insulina coletadas após uma sobrecarga de carboidratos. Caso a glicose baixe ou a insulina suba, o paciente é taxado como hipoglicêmico. Isto está incorreto!
Diversos estudos mostram que até 10% das pessoas normais quando são submetidas a curvas após sobrecargas de açúcar apresentam quedas dos níveis de glicose até valores abaixo de 50 mg/dL sem prejuízo algum para a saúde. Além disso, as curvas têm pouca relação com os sintomas. Isto é, paciente com valores de glicose considerados normais ou altos podem ter sintomas e paciente com valores considerados hipoglicêmicos podem não ter queixa alguma. Outro ponto interessante é que em alguns pacientes os sintomas podem ser desencadeados por placebo, isto é, uma substância inerte, sugerindo um fundo emocional para o quadro. Por fim, dosagens de cortisol e adrenalina realizadas durante estas curvas não se mostraram alteradas durantes os sintomas, o que sugere que eles não sejam causados por hipoglicemia.
A maneira correta de se diagnosticar qualquer tipo de hipoglicemia é através da tríade de Whipple. Para que um paciente seja considerado hipoglicêmico deve apresentar três critérios: sintomas compatíveis, dosagem de glicose abaixo de 50 mg/dL no momento dos sintomas em laboratório (não vale teste de ponta de dedo) e melhora dos sintomas quando a glicose volta a subir. Geralmente um paciente com sintomas suspeitos de hipoglicemia é orientado a comparecer a um laboratório após uma refeição habitual e lá permanecer por até 5 horas. Caso haja sintomas, deverão ser coletadas amostras para glicose, insulina, peptídeo C e pró-insulina. Após esta coleta, são administrados carboidratos e se observa a resolução dos sintomas. Caso se confirme a hipoglicemia, o paciente deverá ser investigado para as causas específicas para poder receber o tratamento apropriado.
Equívoco 3: Pacientes com hipoglicemia pós-prandial devem restringir açúcares ou ficarão diabéticos.
Como exposto anteriormente diversos pacientes recebem o diagnóstico errado e, consequentemente, o tratamento também. Por exemplo, um paciente com transtorno de ansiedade deve ser encaminhado para acompanhamento psiquiátrico e não ter a dieta modificada. Os raros casos de hipoglicemia pós-prandial deverão receber o tratamento conforme a doença de base. Por exemplo, um paciente com insulinoma deverá operar o tumor do pâncreas, já que a dieta ajudará muito pouco no manejo dos sintomas.
Se você tem sintomas após as refeições ou recebeu diagnóstico de hipoglicemia pós-prandial ou reativa, procure um endocrinologista de sua confiança e faça uma revisão. Como vimos equívocos são frequentes e nem sempre as coisas são o que parecem ser.

Diabetes e intolerância ao glúten

“Há mais mistérios entre o céu e a terra, do que toda a nossa vã filosofia.” Esta frase de William Shakespeare pode muito bem ilustrar o tema deste texto: intolerância ao glúten a diabetes tipo 1 estão relacionados?
Antes de tudo, é preciso explicar que a intolerância ao glúten, chamada de doença celíaca, é uma doença que acomete o intestino. Ela acontece porque o organismo da pessoa não reconhece a proteína do glúten e uma reação de defesa autoimune é desencadeada. O resultado é a destruição das células do intestino que são responsáveis por absorver os alimentos.
Os sintomas comuns da doença celíaca são diarreia e cansaço, e nas crianças, por não conseguirem absorver corretamente as vitaminas e sais minerais, pode ocorrer redução do crescimento e desenvolvimento. No entanto, uma parte das pessoas que tem doença celíaca é assintomática, isto é, não apresenta qualquer sinal ou sintoma da doença.
Foi observado que pacientes diabéticos tipo 1 apresentam mais chances de desenvolver doença celíaca, comparados com a população geral. Isso está relacionado ao fato de que o diabetes tipo 1 também é uma doença autoimune, ou seja, ocorre quando o próprio sistema imune da pessoa acaba destruindo as células produtoras de insulina, chamadas células Beta do pâncreas.
Mas por que existe essa associação? Aí está um dos mistérios do nosso organismo que estão sendo desvendados nos últimos anos através das pesquisas genéticas. Cada pessoa apresenta um código de reconhecimento para o sistema imunológico, que é chamado de complexo maior de histocompatibilidade, codificado através do nosso DNA. Em algumas pessoas esse código de reconhecimento está com alguma alteração e as células de defesa passam a enxergar as células do próprio corpo (como no caso das células beta do pâncreas) como inimigas e as atacam. Outras vezes, reconhecem alguns alimentos, como no caso do glúten, como inimigos e ocorre uma ativação do sistema inume. Ainda existe a possibilidade de quando o sistema de defesa entra em contato com alguns vírus, acontecer um reconhecimento deste vírus como algum código de célula que esteja codificado no complexo de histocompatibilidade, como uma reação cruzada.  A consequência é que o sistema imunológico passará a atacar o próprio corpo.
Dessa forma, a explicação para que as pessoas com diabetes tipo 1 sejam mais propensas a desenvolver doença celíaca é uma alteração justamente neste complexo maior de histocompatibilidade. Sabe-se que uma em cada 3345 pessoas no mundo terá doença celíaca sintomática, e uma a cada 200 ou 300 terá a forma assintomática. Já se estima que cerca de 2 a 10% dos pacientes com diabetes tipo 1 tenha alguma forma de doença celíaca.
Para os pacientes com diabetes tipo 1, é importante uma boa conversa com seu médico para avaliar a necessidade de pesquisar se a pessoa tem ou não doença celíaca. A principal modificação na dieta é a retirada do glúten, que está presente no trigo, cevada, centeio e aveia. A realização da dieta melhora a saúde geral da pessoa e permite que o controle do diabetes seja mais adequado. Alguns estudos até indicam melhora dos níveis de glicose no sangue com o controle do glúten na dieta daqueles que tem o diagnóstico de doença celíaca.
Para finalizar, é importante destacar que com o avanço dos estudos científicos, cada vez mais o tratamento do diabetes, tanto o tipo 1 quanto o tipo 2, passa a abranger mais aspectos e a também avaliar o paciente cada vez mais de forma global. Muito já se foi e está sendo estudado e muitos mistérios ainda estão para serem descobertos.

Consumo excessivo de açúcar e diabetes: a polêmica revisitada pela OMS

Recentemente, a organização mundial da saúde (OMS) publicou novas diretrizes1 com recomendações para limitar o consumo de “açúcares livres”, ou seja, carboidratos simples que são adicionados artificialmente durante o processamento industrial dos alimentos. A OMS, em parceria com sua divisão de agricultura e alimentos (FAO – Food and Agriculture Organization), afirmam que o consumo de mais de 10% do total de calorias diárias na forma destes compostos pode levar ao aumento de obesidade, doenças não transmissíveis (diabetes, hipertensão, etc.) e cáries dentárias. Uma recomendação opcional é feita para limitar este total a não mais de 5%.
A associação entre ganho de peso e obesidade é já bem reconhecida, mas o papel do açúcar, consumido em quantidades cada vez maiores desde os anos 1970, como gerador de obesidade e diabetes ainda é assunto de grande controvérsia. Como o diabetes é popularmente conhecido como o aumento do “açúcar no sangue”,  é bem frequente o raciocínio dos pacientes de que um maior consumo de açúcar é o principal fator gerador da doença.
A confusão aumenta com o fato de que, na maioria dos estudos com grupos menores de pacientes, o papel do ganho de peso, seja este associado ao consumo excessivo de açúcar ou não, é o fator dominante para aparecimento de diabetes. Maior ainda, se associado ao sedentarismo. Fatores adicionais como história da doença na família, estresse, medicamentos e muitos outros podem modificar o risco individual. Assim, é corriqueiro que os médicos desmintam essa associação entre açúcar e diabetes, e passem a dar mais ênfase ao controle de peso e pratica de atividades físicas regulares.
Então, como conciliar essa visão com as preocupações da OMS? Uma possibilidade bastante plausível é a seguinte: do ponto de vista individual, muitos fatores altamente variáveis competem para o aparecimento do diabetes, sendo o ganho de peso aquele com maior preponderância. Por outro lado, várias pesquisas feitas com dados populacionais encontraram associação significativa entre maior consumo de açúcar e doenças crônicas, inclusive o diabetes. Um interessante estudo2 feito por pesquisadores da Califórnia avaliou dados de 173 países, provenientes de dados oficiais (urbanização, PIB per capita, industrialização, envelhecimento, incidência de diabetes) e da FAO (consumo alimentar de fibras, proteínas, álcool, açúcar refinado e outros), bem como sua evolução durante período de 2000 a 2010.
Após uma análise estatística cuidadosa e bastante repetitiva, o consumo de açúcar foi relacionado a maior incidência de diabetes, de forma independente da obesidade, sedentarismo e consumo de álcool. Tempo mais longo de exposição ao maior consumo de açúcar teve resultados semelhantes. Os autores tiveram ainda o cuidado de separar países onde o consumo de açúcar diminuiu durante o período, verificando que nestes a incidência de diabetes também caiu.
Ou seja, do ponto de vista mais coletivo, onde os fatores individuais são menos importantes, o consumo excessivo de açúcar pode aumentar o número de novos casos de diabetes. Diversos mecanismos metabólicos têm sido estudados nos últimos anos implicando o consumo de açúcar (principalmente aqueles ricos em frutose) com maior chance de ganho de peso, diabetes, esteato-hepatite não alcoólica, hipertrigliceridemia, aumento do ácido úrico e hipertensão. Enfim, todos os componentes da chamada síndrome metabólica.
Ou seja, como conclusão desta polêmica, pelo menos até o momento, podemos dizer que do ponto de vista individual de cada paciente, dentro do consultório, devemos continuar a atacar os fatores já consagrados: obesidade e sedentarismo. Porém, para uma estratégia preventiva eficaz, do ponto de vista coletivo e de saúde pública, talvez deveríamos dar maior atenção ao crescente aumento na adição de açúcares simples durante o processamento industrial dos alimentos, bem como ampliar os esforços em educação alimentar, visando uma escolha mais consciente daquilo que levamos do supermercado para dentro de casa.
Contra uma doença que se alastra rapidamente e em grande número, apenas com uma abordagem coletiva e maciça é que poderemos ter esperança de um futuro mais doce, mas no bom sentido.